A batida tribal, o baixo ameaçador, a guitarra fantasmagórica e finalmente a voz sarcástica que anuncia “I am Governor Jerry Brown”. Era um verdadeiro chamado para a batalha: um botão de alerta que, quando acionado, invertia os papéis da sociedade. Garotos populares para trás, desajustados para frente! Doce — e barulhenta — vingança dos rejeitados, tímidos, feios, nerds, punks, skatistas, enfim, de todos aqueles considerados “diferentes”.
Esse épico começo de «California Über Alles», reconhecível a quilômetros de distância, foi incorporado não apenas ao imaginário daquela geração que cresceu pulando com esse som: como um vírus, penetrou no sangue de todo e qualquer punk que nasceu nos anos seguintes. Corrigindo: décadas seguintes.
Lá se vão 34 anos desde o lançamento de Fresh Fruit for Rotting Vegetables, o primeiro e clássico álbum do Dead Kennedys. A edição nacional, em vinil branco, saiu pela gravadora Continental com seis anos de atraso e tornou-se um item sagrado para a juventude brasileira. Era tocado em festas, emprestado (com certo temor) para amigos, gravado em fitas K7, disputado a tapa em lojas quando o pôster estava intacto! Três décadas depois e quase nada mudou: as faixas do Fresh Fruit ainda animam muitas festas, ninguém gosta muito de emprestar esse disco, ele ainda marca presença em playlists ou mixtapes, e o LP com o pôster continua valendo o dobro do preço nas feirinhas de vinil.
A influência do Dead Kennedys é atestada pela longevidade. Fresh Fruit permanece atual.
Assim, o recorte histórico do escritor Alex Ogg é muito bem-vindo. Com a contextualização dos primeiros anos da banda e o acompanhamento minucioso do processo de composição e gravação do debut, o autor britânico consegue estabelecer um pouco de consenso numa história que é marcada por brigas, disputas judiciais e egos inflamados/feridos. É tarefa árdua (quase impossível) lançar algo que agrade todas as partes envolvidas nesse caso. E Alex Ogg conseguiu — com paciência e muito jogo de cintura, mas conseguiu (inclusive ele enumerou no apêndice o número de aspas atribuídas à cada um dos integrantes, para “provar” que todos tiveram a chance de defender a sua versão).
Tretas à parte, a obra vai agradar os fãs, não apenas pelos depoimentos e fatos levantados, mas também pela riqueza gráfica: o livro é todo ilustrado com as artes de Winston Smith, o homem responsável pelo emblemático logo do DK e um dos grandes nomes na técnica da colagem punk, e com as fotografias de Ruby Ray, que estava agachado na beira do palco do Mabuhay Gardens, no fim dos anos 70/começo dos 80, registrando a efervescente cena punk que nascia em San Francisco. Mergulhe nas páginas desse livro e entenda com mais clareza o papel-chave do DK na transformação da retórica punk em algo genuinamente ameaçador — e incrivelmente divertido.
Por Marcelo Viegas,
editor brasileiro do livro e, orgulhosamente, um dos desajustados que pulava feito doido toda vez que ouvia «California Über Alles» numa festa nos anos 80.