As histórias mais absurdas de Desamparo são verdadeiras. O resto é ficção. Antes de passar pelos labirintos da imaginação do autor, porém, a biografia do interior paulista foi pesquisada através de trabalho jornalístico que buscou as origens do povoamento do noroeste paulista. Entre figuras históricos como o matador dândi Dioguinho e a ama de leite de Dom Pedro II, Maria Capa Negra, um sábio ancião que envelheceu até virar árvore, um padre milagreiro que serve de poleiro aos pássaros e uma nativa insaciável que sonha em devorar o sol, nos deparamos com uma pequena biografia do nosso povo, uma fábula sobre o caminho que nos trouxe ao violento país que somos hoje, personagens que estrelam um balé de gerações iniciado com os primeiros patriarcas, em um sertão quase bíblico, banhado pelo sangue dos índios, pela malária e pela grilagem de terras.
Em meio a tudo isso, «a sertaneja é antes de tudo uma forte». E Rita Telma é a cabocla que encarnará o destino desta cidade-embrião, nascida na trilha da estrada de ferro. Desamparo é o Brasil, o início do século XX, seu tempo é o resumo da história da humanidade que se repete até os dias de hoje.
Flashbacks e reviravoltas vão montando, aos poucos, a tragédia que vai definir o destino de Rita, sua família e seus contemporâneos. A história da nascente cidade corre paralela à busca por vingança. Filha de Maria Chica, viúva pioneira, a protagonista vive atormentada pelo espírito do pai — despojado de suas terras, de sua honra e de seu amor. A versão sertaneja de Hamlet, que se desenrola na trama, é, também, o tema do romance, nunca terminado, do Coronel Manoel Antero, antagonista de Rita. Odisseu frustrado, desbravando o mar de mato do sertão paulista, o astuto rábula que busca na política, no progresso e na semeadura de povoados, o heroísmo que lhe garantiria a imortalidade.
Um dos vencedores do Primeiro Edital para Publicação de Livros da Prefeitura de São Paulo, Desamparo une a precisão ágil do jornalismo com a prosa poética de sotaque caipira. O livro também foi Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2019.